Two

– Acabou.

– O quê?

Essa semana, por alguma razão que ainda não consigo explicar, acho que tudo acabou. Ele me respondeu de uma forma diferente, não sei bem dizer, foi só estranho. Que bom, não aguentava mais aquele papo todo de fantasia, aquele conto de fadas, estava honestamente de saco cheio.

– De quem você está falando?

– Daquele amigo de que te falei na última sessão, que você fez questão de me fazer dizer que eu estava apaixonada!

Me olhou com aquele olhar que, já sabia, queria dizer que não havia feito nada. Manteve-se mudo. Odiava isso, mas não deixava nunca de funcionar. Gritei:

– OK, JÁ ENTENDI! Daquele amigo pelo qual estou MUITO APAIXONADA E NÃO QUERO ADMITIR. Saco! Satisfeito? É que falar faz virar verdade, parece que não lê conto infantil!

Riu de leve, e me olhava como quem dizia que não precisava estar satisfeito. Finalmente disse:

– O que houve?

– Como te disse no começo. Algo na mensagem dele mostrava uma distância, uma frieza, como se não quisesse mais continuar. O outro ainda me procura às vezes, eu noto que tá bastante interessado, é bem divertido estar com ele.

– Então?

Esse só quer me comer, percebo de longe. Me elogia, se abre, faz tudo o que for preciso pra isso. Sou bonita e piranha o suficiente pra conseguir um amante assim, se quiser. Mas esse é presa fácil demais, não tem graça, não tem tanta vida. Aliás, tem alguma, mas é diferente. É o prazer de se deitar com outro homem. Não é novidade, já fiz várias vezes, já te contei as vezes que fiz. Mas esse… Esse não era assim. Esse me fez me sentir diferente. Era como se eu pudesse acreditar de novo. Era como se tudo o que eu acreditei na juventude não fosse mera infantilidade. A força dele vem disso, acho, do olhar infantil pras coisas que faz, do jeito meio bobo, meio criança atrapalhada de fazer as coisas apesar de ser um homem um tanto poderoso. O charme dele é definitivamente ser espontâneo e um pouco tímido e de parecer menos grandioso do que é. Quando você descobre o tanto de coisas que ele sabe o quanto ele pode despertar em você simplesmente te olhando…

Achei que havia ouvido uma risada.

– O que foi?

– Nada, pode continuar.

– Perdi as contas de quantas vezes perdi foco em compromissos e fiz coisas que não devia, fui ao banheiro sem precisar… fiz essas coisas unicamente para poder ter um tempo com ele. Todos os outros… Repito, todos os outros, me fazem me sentir tendo que me adaptar a eles. Mesmo este último, sinto que tenho que mostrar recíprocas inexistentes ou que até existem, mas que são banais para mim. Já sei que é um narcisista, me quer pra ser uma figurinha a mais pra ele. O prazer é pequeno nisso. Honestamente, até conhecer esse cara eu nunca soube que isso que eu sempre curti era tão pouco e ainda assim…

Olhava-me com uma interrogação no rosto.

– Eu sei que fui eu quem o afastei. Quis iniciar uma briguinha entre dois. Mas ele nunca foi do tipo que briga por pessoas, desde o princípio isso ficou claro. A liberdade pra ele é muito importante, sempre falava em escolhas, essas coisas. Toda vez que eu o ameacei com ciúmes, ele foi embora de algum jeito. Às vezes fisicamente, às vezes só me sentia abandonada emocionalmente porque sentia que tinha errado quando tinha feito aquilo e me desculpava. Não era ele, na verdade, era eu. Eu sabia que tava fazendo de propósito, que tava querendo machucar. Eu te odeio também por isso (ele ri). Mas nada que ele fiz nunca foi uma pressão ou uma chantagem, ele simplesmente evitava jogar aquele jogo. Ele não ficava mudo ou apático, então acho que era mais eu que percebia que ele não havia gostado daquilo e me desculpava. Era como se… se quando pedisse que reforçasse as amarras ele me revelasse que elas não existiam, que eu estava ali porque queria, porque eu escolhi. Só que não o fazia com palavras, mas com atitudes e isso doía tanto em mim. Como se diz, era um tapa de pelica. Muitas vezes se mantinha o mesmo e eu, porque sabia que podia perde-lo se o fizesse sentir ciúmes, me desculpasse. Ele sempre dizia não ter problemas, era bem ciente do que era o amor e de como eu era e não tentava passa-lo – o que me deixava ainda mais triste porque eu já queria gritar pro mundo que ele era maravilhoso, mas morria de medo que ele percebesse isso e me abandonasse, então ficava quieta. Era horrível saber que eu podia ir embora a hora que eu quisesse, que eu estava escolhendo estar ali. Toda vez que fazia isso, ficava muito puta. –

– Isso?

Ignorar os ciúmes que eu tentava pôr. Esse sempre foi o jeito que tive de prender homens: fazendo-me objeto de desejo para mais de um, incitando brigas e, geralmente, não escolhendo nenhum dos dois nos bastidores. Ele é mais esperto, acho. Até tentou brincar um pouco de me fazer ciúmes, mas rapidamente abandonou a brincadeira em prol de realmente se divertir com quem inicialmente achei que só usava. Isso também me deixou irritada. Era como se eu fosse completamente descartável, mas ao mesmo tempo, a pessoa mais importante pra ele. Acho que… ele me dava liberdade e eu nunca soube ser livre, não sei. Era estranho não ter alguém brigando por mim e querer tanto que ele me disputasse. Ainda é estranho, mas o jeito dele me dizia silenciosamente que ele já sabia que me ganhado. Ou talvez que ele não quisesse ganhar, que só quisesse minha companhia e pronto. E, porque eu estava morrendo de medo, eu tentei colocar ciúmes nele várias vezes. Precisava de alguma coisa que eu conhecesse. Homens enciumados são minha especialidade… Mas saiu pela culatra. Depois de tanto contato próximo e intenso num período curto, acho mesmo que ele entendeu que sou assim e desistiu, talvez com raiva de mim, talvez só decepcionado com a má escolha que fez… Porra nenhuma, minha raiva é que se eu voltar hoje ele ainda me aceita de volta. E vai me dar o sonho que eu quis. eu não quero que esse sonho seja possível! Aí fantasio que talvez ele tenha encontrado alguém que queira viver o que ele quer… Não que não tenha defeitos. Tem. Quer algumas coisas só do jeito dele. Mas confesso que mesmo isso era charmoso pra mim porque me fazia querer saber mais sobre ele. Não era estratégia, ele só não gostava das luzes. Em parte, tinha isso também. Do lado dele eu sempre sentia que brilhava e ele gostava de me ver brilhando tanto. Era uma sensação muito forte essa de alguém que eu não precisei conquistar me olhando com tanto carinho.

– E por que você tentou tanto destruir tudo?

– Eu teria que assumir responsabilidades demais sobre mim, sobre as coisas que eu quero. No fundo eu não queria isso não… e queria muito isso ao mesmo tempo. Morro de medo dessa liberdade toda… não sei o que pode acontecer se eu descobrir que, na verdade eu posso ter o que eu quiser… digo, não posso ter o que eu quiser.

– Ficamos por aqui hoje?

– Você e seus atos falhos.

Texto originalmente publicado aqui.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

Comments

comments

Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.