O retorno pra casa me traz a genérica música que dizia cantar tua existência. Tão pouco específica quanto a música, mas, por um tempo, tão mais importante para mim do que ela. Tão singular, tão necessária de agrados. Agora, não mais.
Nenhuma flor, nenhuma vela, nenhum tipo de mensagem para chegar de madrugada ou para enviar pela mera obrigação de ter um relacionamento. Noites insones em preocupação com a possibilidade de ter te ofendido, perguntas infinitas sobre tudo estar ou não bem, silêncios inexplicáveis comigo, mas também com os seus, irritação espontânea que vinha sem motivo… hoje, apenas reminiscências de um passado que parece ter existido por mais tempo do que cronologicamente existiu. Apenas mostra o quanto aquilo foi um mergulho…não, um afogamento do qual me salvei nadando para longe, ainda que sempre tentasses me convencer de que era boia, não âncora (e, por vezes, conseguiu).
A impossibilidade de reconhecer ou agradecer e a cobrança excessiva, mas sem sequer um agradecimento quando algo lhe era ofertado, nem mesmo uma expressão facial de contentamento ao comer da minha comida: miragens de um passado que mais parece um pesadelo distante que durou demais, como as brigas sem motivo, as acusações infundadas e as “brincadeiras” que sempre só eram engraçadas pra ti, sendo taxado eu de “sensível demais” ao dizer que o riso era de escárnio.
Como dizer a alguém que essa pessoa não te vê? Suas retinas, a despeito da necessidade compartilhada por nós de lentes para o mundo, não são queimadas ou não funcionais, têm sensibilidade: o problema é que esse aqui é apenas o sentido técnico da palavra, e tua sensibilidade era tão técnica quanto o era em tua profissão. Nenhum mergulho, nenhum apaixonamento, nenhum maravilhamento: tão seca quanto a vida quanto tinha se tornado sua genitália, a menos que eu ameaçasse sumir, te tratasse com frieza, descaso, desprezo.
Esses, somados ao desprezo, eram os signos da tua excitação. Me lembro bem com como te tornavas receptiva à penetração ao mero sinal de algo que era anti-eu: agressão, brutalidade, violência. Gozavas melhor com a minha negação ou, antes, preparava-te melhor para o prazer com ela. Eras mais receptiva ao grito do que ao afago e eu que nunca gritei nunca te tive receptiva como teus ex provavelmente a tiveram, desejosa que era de ser um objeto de sacrifício.
O amor calmo que me prometeste jamais veio, posto que, para que viesse, precisaria partir de alguém que me sabe um indivíduo à parte e não uma extensão tua. A simbiose excessivamente integrativa (como toda simbiose) que buscavas impedia mesmo que visses a beleza da liberdade, especialmente porque o outro, se livre era, rejeitando-te estaria. Entendia minha liberdade como tua rejeição, e o cômico é que, já que é o ser de todo humano liberdade, vives eternamente rejeitada pela humanidade como um todo. Cômico, de fato, porque vives como uma estrangeira rejeitada ainda que fales a língua e seja uma nativa. Ou talvez não seja, já que talvez jamais tenha se dado conta de que nascer é um ato de separação.
Talvez por isso o desespero voraz de preencher um vazio existencial com o órgão de vários homens, confissão que me fizera de maneira direta ao dizer que se ocupava sexual de vários homens tão logo terminava um namoro. A impossibilidade da solidão é o fulgurar do teu vazio em plena luz. É teu desespero porque não te sabes querida por ninguém, não porque não te amem, mas porque te sabes incapaz de ser amada.
Teus traumas que tanto justificaram tua destrutividade não são para mim, hoje, mais do que passado. Tuas tristezas, que tanto importaram e que tentei ajudar a sustentar, nada mais do que material para que em meu trabalho perceba que outros bebem veneno sem o saber. Tua existência mesquinha, que recusava um elogio ao mesmo homem que chamava de “vida” para que tu, por acaso, não exaltasses dele o ego, nada mais do que um momento de ridícula penumbra que se dissipou tão rápido quanto veio.
O melhor de tudo não é que acabou… ou melhor, que o que quer que tivemos terminou, ou terminei, enfim, não estou mais aí. O melhor para mim é ter ciência de que o pior dos castigos é aquele tu vives após o término: a tormenta da tua consciência. Atormentada por saber que o abandono que recebestes ao fim foi um presente por ti mesmo encomendado, mas que nunca soubeste quando ia chegar, tua boca será, com a de um possuído, forçada a confessar e proferir a exata sentença que sempre te pareceu impossível ao longo: a culpa foi minha. Logo após confessar tua culpa, notarás que a sentença, tal e qual o teu amor, compartilham o mesmo destino: são completamente inúteis agora. Terás nisso teu maior castigo: viver consigo mesma.