Você, quatro letras

Eu não devia ter vindo. Penso, repenso, o pensamento dança Ragatanga na minha cabeça. Te vi ali, gestos espalhafatosos tão seus e ao mesmo tempo tão irreveláveis do verdadeiro você. Paralisei. De novo. Como em vezes tantas em que te vi do outro lado de um desses incontáveis muros entre nós.

Na porta do bar. Na saída do trem. Na catraca do show. Agora, na recepção da festa, reteso. Não, eu não consigo. Como de todas as outras vezes, me viro. Vou embora, decido. Que grande erro achar boa ideia vir a um evento em que eu sabia que te encontraria.

Mas dessa vez é diferente. Porque você me vê e me chama. Ainda de costas, respiro fundo, visto o sorriso mais simpático-indiferente que consigo – mesmo ruindo tudo por dentro pelo imutável impacto de você – e me viro, te encaro nos olhos.

Como é difícil ostentar olhos de colegagem na conexão com aquele por quem tanto se sentiu (passado?).

Faço o social mais rápido da história, jogo no ar a piada mais superficial-chocante que consigo pra me desvencilhar o quanto antes nos segundos entre risos duvidosos e olhares nervosos. Consigo me refugiar um pouco nos fundos, na vista pro Corcovado, tentando me recompor só o suficiente pra conseguir te falar palavras vazias de sábado à noite e poder ir embora.

Meu amigo cutuca que continuo não conseguindo disfarçar quando se trata de você, que era um milagre eu estar em pé no nada módico salto de 18cm com a cara de completamente derretida que eu estava. É, eu também não sabia como eu tava sustentando.

Um segundo, um único segundo em que ele sai pra encher uma “tapaué” pro café da manhã de domingo, você me aparece, sorriso torto e as muitas sardas, tão típicas. Muito mais na pálpebra esquerda do que na direita. Me ocorre aquele primeiro pensamento que tive quando nos conhecemos, no primeiro bom-dia (hífen, claro).

Você me diz que estava me caçando desde que desapareci à la Carmen Sandiego, disseram que “a moça bonita de preto foi por ali”. Bonita, você só fica mais bonita. Abro a boca caçando no ar qualquer coisa pra te responder, mas nada me vem.

É você, afinal, bem na minha frente, a aura mista inocente-sacana que sempre me fodeu o juízo, o exato cheiro dos cabelos me enchendo até as veias. Foi inevitável pensar, você me diz, se fôssemos nossos os braços dados na entrada, chegando assim no evento, nos fazendo um ao outro, como casal que s/fomos (foi impossível distinguir o fonema na sua dicção de carioquês carregadíssimo, e talvez não fosse mesmo pra ser distinguível).

Você diz que não devia, mas está bêbado demais pra segurar qualquer coisa depois de tanto tempo. Te conhecendo, sei que esse bêbado demais decorre de uns’ meio copo de cerveja. Você ri. Eu não quero pensar em como seria, te respondo, mas é um pedido que lhe chego a implorar.

Você prende os lábios daquele jeito que me desmonta – puta merda -, como se eu tivesse te dado um corte. Respiro fundo como se isso fosse me trazer força, coragem, qualquer coisa, qualquer coisa, meu deus, e te digo.

Entenda, foi difícil demais PARAR de pensar em como seria, é só por isso que não quero nem posso fantasiar de novo. Esse terreno – você – pra mim nunca foi nada seguro. As sardas da sobrancelha esquerda são meu fatídico algoz de sempre.

Então você coloca a mão na minha cintura, e eu sou tua. É impossível segurar qualquer coisa depois disso, pose, personagem, questionamentos sobre os depois, estarmos em público, sequer sermos solteiros.

Sou tua, apenas. Não sou tua de novo, porque nesse hiato fato é que tua nunca deixei de ser. Sou tua porque desde o início assim percebi inerente.

E tuas mãos em mim são mera constatação. Tua boca, todas as minhas confissões, todas elas. Afinal, não foram assim que elas começaram?

Sardas de entrega, lábios de marcação desse território que é teu, nosso reconhecimento de sempre. Não dá pra pensar em contexto e consequências, é impossível, só existe Você.

O beijo preferido e a paz inigualável de me desaguar de novo, e de novo, e de novo em nós dois.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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