Aposta

Você acabou de sair. Sua música é sempre mais triste do que as minhas. Coloco ela pra tocar:

You got a fast car…

Lembro de meu supervisor falar da melancolia das mulheres e rio, porque é o que estava pensando. Na verdade, lembro bem da primeira vez que você me mostrou essa música. Realmente, estávamos no seu carro, parecia uma declaração, uma escrita da nossa história avant la lettre. Você, no volante, sem graça. Uma mão repousando no meu colo, procurando o zíper. É tua hora de uma pequena aventura, te sentes confortável comigo, deixas a imaginação fluir. Eu me rio, te olhando. Um olhar que você não encara, mas sente e ri, dando a entender que o percebe bem.

I got a plan to get us out of here

Um plano seria, de fato, bom. Mas não precisamos disso. Qual a grande utilidade e deum plano, afinal? Sou pra você a quebra dos planos e você é para mim a consequência de não precisar deles. Seguir linearmente, crescer, casar, casal, família, filhos…planos, todos eles. Pro caralho com eles. Absolutamente fúteis. Comportam eles os dias nos quais você está ganindo enquanto fode comigo? Terão eles o olhar que te faz me beijar, possessa? Terão eles a sedução que aprisiona também a ti e te constrange a me seduzir com igual força? Terão esses planos a tua mão que agora abre meu zíper com um misto de insegurança e esperança? Terão eles o tato e o paladar que se interpenetram e trazem no palato o que não era pra ser sentido?

And finally see what it means to be living…

Será? Será que com esses planos saberíamos o que significa viver? Será que a vida não é essa pergunta aberta constante sobre o que ela significa? Será que não é sempre perguntarmos a que será que isso tudo se destina que nos faz vivos? Será mesmo que precisamos descobrir ou mesmo construir um sentido pra vida? Será que o sentido não está, não sempre esteve, nessa aposta? Nessa mesma que agora estamos tentando construir e chamar de amor? Será mesmo que não nos prometeram uma razão que nos diga “acalme-se, está tudo bem” pelo simples fato de que eles mesmos precisavam disso? Não seriam a calmaria dita necessária, as certezas, as apostas, a fé, Deus, tudo, fruto de um medo da incerteza? E não seria exatamente o incerto o que é viver? Se sim, quantas vidas não vivemos, então?

And I had a feeling that I belonged…

Quando ele chega, você me diz que gosta especialmente desse trecho. Porque se sentir pertencendo a algo te é importante. E pertencer não é necessariamente ser objeto de ninguém, não é ser coisa de ninguém, mesmo que a palavra venha, em grande parte, desse termo. Porque também pode significar ter a ver. “Nesse sentido”, você me diz, “pertencemos um ao outro”, porque temos a ver um com o outro. E o que temos a ver? Não sei. Mas acho que temos muito a ver. Porque essa estrada ainda é começo e existe muito a ser visto. Muitas perguntas mais a serem feitas. Muitas coisas que nossos planos não nos permitiram ver. Tudo o que temos é uma aposta:

Maybe together we can get somewhere

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.