Vem Conversar

Aquele pianista

Atravesso a rua, buscando o bar em que combinamos. Bar de blues, dou um sorrisinho. Você não tinha especificado, só tinha dito que seria a minha cara. Sim, você acertou, tive logo aquela identificação quando bati o olho, e já sabia que era ali antes de buscar o número na avenida imensa.

Não precisaria, também, te vejo sentado empunhando Hobsbawn. A cena deslocada do padrão dessa realidade de sextas à noite me causa aquela satisfação a nível de alma. Ainda bem que eu vim, penso, algo bem diferente de tudo o que vinha pensando nas minhas últimas saídas.

Sabe que eu tenho essa coleção lá em casa, mas nunca terminei?, é o boa-noite que te dou, você elogia minha roupa. Omito que pensei por três dias nela, precisava chegar à altura da sua marca registrada de nunca repetir a echarpe. E sempre a combinar com as meias. Mesmo que elas sequer apareçam.

Elogio tua escolha clássica e a camisa preta. No dia que nos conhecemos, você estava com ela. Sim, eu lembro. Glenfiddich, claro, posso endossar mais o estereótipo do que sou? Você me acompanha e não me dá brecha para o início fático da conversa, já coloca as cartas na mesa.

Eu não te convidei como amigo. Isso é estranho demais pra você? Incredulidade, suspensão epistêmica, gastando latim, mas estranheza, de jeito nenhum. Surpresa ainda, embora pensasse em nós. Embora pensasse muito em nós. Só por que eu? Sim, porque você. O que não impede, mas não deixa de cara muita margem. Você vai achar estranho se eu disser que penso em você? Há bastante tempo, nas últimas semanas isso só se intensificou. Espero que não seja nas desafinadas, viu, porque depois de me renegar, vir isso, pense num trauma que nem invocando Freud em mesa branca.

Você ri e segura minha mão. Gelo. Reteso. Finjo naturalidade, mas você percebe e ri. Só que confunde, acha que é esquiva, que não quero. Chego mais perto, puxo sua mão mais forte e a seguro, te indicando que te correspondo.

A que devo a honra desses pensamentos? Você chama a minha in-tenção, você destaca a alteração poética na palavra. Que típico de você. Gosto de te saber. Te acho interessante. Penso na possibilidade de nós dois.

Eu sorrio. incredulidade, é isso, embora desde o início sentisse a identificação e a conexão. Sim, sinto. Só de te olhar. Mais uma coisa estranha? Nada estranha.

Te chamo pelo primeiro nome. Vem cá. O beijo encaixa, você comenta empolgado, entregue, intenso, volta, gostei, quero mais de você. Eu não quero pressa pra nós dois, você me diz. Nem eu. Pianista não pode ter pressa, ninguém nunca pariu, sorveu, refez uma sinfonia sem saber viver os adagios. Os detalhes em prestíssimo precisam sempre dos adagios.

Você me beija, eu quero morar na sua boca. Eu também. São muitos eu tambéns. Você não se importa por eu? Não, claro que não me importo. Isso é completamente irrelevante.

Eu achava que você só gostava de cara grandão com cara de marginal. Gargalho. Todo mundo pensa isso. Tá além de qualquer coisa do tipo. Nós dois. Hmmm… é só isso? Não, adoro a simetria do seu perfil, seus traços, o desenho do seu rosto. Sobrancelhas cheias e olhos desafiadores de quem banca o que vier. A concentração. A imersão. É um combo cruel, viu?

Você ri, outra vez, mas não é flerte de começos, é a verdade. Você me deixa sem estrutura nenhuma. Você tem feito isso comigo. Travei uma luta interna pra falar contigo, me segurei, me forcei a passar, mas pra quê? Qual seria o propósito de nos negar sem nos dar nem uma chance? Ainda bem que nos permitimos.

Assim, como acidente inesperado, a tônica inevitável: Fá dobrado bemol.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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