Vem Conversar

Ledo engano

casal se beijando na cama

Pensei mesmo que queríamos ao menos uma coisa próxima. Nunca a mesma coisa, claro, sou clínico demais e aprendi bem lá que o mesmo não tem como existir com a precisão matemática que o humano tanto diz desejar justo por não conseguir alcançar. Mas ao menos próximos, como quem goza junto e gosta de se mergulhar numa fantasia comum de união temporária, quiçá perpétua. Essa era tua fantasia de gozo maior, lembra? Pena que era assim apenas porque era esse o modo que você se sentia me tirando a liberdade, muito mais do que pela união de dois indivíduos diferentes que respeitam a diferença individual de cada um. Fantasia de mesmo nome, casos bem diferentes: tu não te querias livre e me odiavas se eu me quisesse.

Não por acaso, o dia do término, comicamente situado num quatro de julho no qual os Estados Unidos comemoram a própria independência, foi marcado por uma conversa na qual tudo foi assumido por você, menos a própria responsabilidade. Você, que sempre achou que conversas entre casais eram brigas nas quais o que mais importava era estar certa, provou a cada coisa que eu dizia que eu estava certo, menos por um desejo meu de certitude do que pelas suas reações que simplesmente me diziam “mas eu também, mas você também…”.

Engraçado, tenho por profissão as palavras e a sua escuta é particularmente perverso ter alguém ao lado que tenta distorcer o sentido do que diz, como se não houvesse dito. Distorcer, de fato, porque nasceu algo torcido, tão bem amarrado que o esforço de desamarrar soa absolutamente ridículo. Ouvir que o que é importante pra mim não é importante pra você não pode ter outro sentido, não é apenas uma axiologia distinta que se anuncia, mas a desimportância absoluta do meu mundo para você. É não existir. E ouvir que você se sentir de tal de modo sem que eu nunca dissesse ou contribuísse pra isso é equivalente a você me dizer, explicitamente, com todas as palavras, letras, vírgulas, entonações, que eu não importava, não era o homem ideal, que teu ex era o amor da tua vida, mas não pra tua vida e todos os outros segredos de alcova que você me confessou é me colocar como o pior dos escutadores quando eu literalmente formo outros para a escuta precisa do que lhes é dito.

Não interessa, muitas vezes, o que você quis dizer, mas o que você disse. E o que você disse foi tanto. Me disse que não há fora de você que te importe, que meu corpo no teu era seu corpo no seu porque me cria teu, apenas uma extensão de quem tu eras. A proximidade excessiva, paradoxalmente, aniquila o outro. É só assim que você ama: aniquilando.

Prova disso: tentar utilizar como arma o que é meu sustento e, a um só tempo, pedir, para tentarmos dar nova chance à relação. Isso é dar testemunho do quanto você nunca quis que meus poros penetrassem os seus, que teus olhos vissem qualquer coisa além do torpe desejo de ter uma companhia ridiculamente próxima de você, um pau dentro de você para tua efêmera completude, uma gozada dentro para que sentisses que alguma vida pulsa ainda aí. Te penetrando, provavelmente pensavas, era tu mesma te penetrando. Não tinha outro. Tentar perverter meu sustento mostra mesmo que me querias caído quando eu sempre te quis voando.

Quis acreditar mesmo que você queria uma relação de amor. Ledo engano, não pelo que querias, mas por acreditar que amor, pra você, era algo além de auto amor. Não era, não pode ser porque pra ser isso era preciso que você fosse capaz de algo que você não é: escutar. Escutar exige imersão num mundo de possibilidades e você é sua única possibilidade. É muito pouco, como era seu amor. E de pouco não me satisfaço: é preciso saber devorar mundos para que se possa ser um. E você, que pena, não sabia.

Por isso, disse vários adeuses que você não entendeu. Quando o derradeiro chegou, apenas sofreu como se surpresa fosse. Também pudera: pra quem não tem ou é mundo, qualquer coisa diferente é uma surpresa.

Uriel Nascimento

Doutor em Filosofia Moderna pela PUC- Rio. Também graduado em Filosofia pela Unirio, mestre em Filosofia (Estética) pela PUC-Rio. Psicanalista, integrante do Núcleo de Autismo e Psicose da escola Letra Freudiana. Intérprete e Tradutor Ing<>Port. Dançarino bolsista da Escola Jaime Aroxa. Autor do livro Aquilo que não foi dito, pela Razzah Publishers.

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