O pianista e as recaídas

Por que a gente precisa de tanta coragem pra coisas tão simples? Mandar uma mensagem. Dar um oi. Dizer que faz falta.

Foi num desses questionamentos de uma quase madrugada mas já certamente insone que te liguei. Sim, ligação, esse tão invasivo-ultrajante dos nossos tempos. 23h de uma terça-feira véspera de feriado. Cerimônia, nenhuma; noção, menos.

Mas foram inúmeras quartas injustas desde então e eu pensava na coragem. E no porquê doses tão exacerbadas dela são necessárias pra coisas tão pequenas perto do tanto que guardam. E, mais ainda, por que colocamos tantas barreiras pra essas ninharias.

Questionar se é só uma ilusão, que eu nunca vou lidar bem com suas cenas e excessos, que sequer de mulher você gosta e tudo isso é insustentável, como deve ser, e que é por isso, só por isso, que tanto queimo e sinto.

Então o seu alô fechado e grave, contraste com o você de superfície que você usa pra se esconder e que eu uso pra justificar o meu medo, embaralha tudo. Pois que barreira-razão permanece quando as pernas amolecem e o coração vem à boca?

Não é surpresa, mas é assim que me ocorre. Sua respiração é tão funda que de imediato faz a minha se coordenar com ela. Ou é só esse desejo perene de me coordenar com você. Teu ritmo, andamento, compasso. Movimentos. Conversas leves e fluidas de cumplicidade, a intimidade inalterada que sempre tivemos até no olho, no tato, na telepatia. No fundo, eu só queria que você soubesse que você sempre esteve certo sobre a autenticidade de nós dois, a nossa espontaneidade de sentimento bobo.

Eu continuo te amando, Gabriel. E mesmo não tendo a escusa de que é por ver todo dia echarpe, óculos escuros e café apoiados no piano de armário anunciando sua chegada e me abrindo paz, sorrisos e portas antes mesmo do seu abraço safado-protetor por trás, você segue da capo al fine o melhor compositor e intérprete de mim.

Parte V

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.