Vem Conversar

O pianista e o não

Aquela primeira vez que te fiz um pedido.

Um pedido de fato, por necessidade, daqueles que são quase súplica.

A gente se odiava, lembra? Então o total deboche do destino. Era o único lugar vago no metrô lotado, o sorriso sem graça do clima merda. Eu só queria chegar rápido e me livrar de ter que estar ali do seu lado. Só seis estações, só cinco estações, só quatro estações, eu me dizia. A pane que nos prendeu numa socialização obrigatória de mais de uma hora.

E aquela conversa forçada, porque o silêncio era até pior do que fingir que a gente se suportava, nos abriu caminhos inesperados de nós dois.

Aquele teu “que surpresa boa você”, que acabou comigo. Tudo mudou. O jantar pós-expediente no mesmo dia que logo virou ritual. E logo estarmos juntos virou também ritual. O nosso ritual, aquele pacto tácito que fizemos de nós dois. Parecia óbvio nos falarmos todo dia, fazermos tudo juntos, nos incluirmos nos planos um do outro. Nunca questionamos a extinção do ódio ali tão presente até poucos dias antes.

Não dava pra reviver a época em que só queríamos distância um do outro? Sermos indiferentes, sem sorrisos desviando, gargalhadas demais, os olhos atrevidos me buscando à mínima brecha?

Não, você me disse não.

Disse que entendia eu não querer a conexão, eu evitar a relação, eu negar a química avassaladora. Mas daí a te pedir pra fazer o mesmo era inaceitável.

Se eu quisesse agir assim, que assim fosse, mas eu não tinha o mínimo direito de te impedir. De me olhar doce, de me olhar demorado, de me olhar tua. De sentir.

Então você negou aquela súplica de quando te clamei por ajuda. Para que você colaborasse em não nos tornar casal, em nos fingir neutros, em nos despir um do outro.

Não, você jamais faria isso.

Você me abandonou nessa arena, lutando sem armas e sem escudo. Tendo que sozinha carregar o fardo da responsabilidade por não sermos. O que eu faço agora com o retrogosto perene da culpa?

Parte I
Parte II

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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