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Quebrar-se e remendar-se – ou: o que não te contaram sobre o processo de cura

mulher de turbante segurando uma taça enquanto está no notebook

Quebrar-se e remendar-se parece um título bem intuitivo. Quem nunca se sentiu quebrado em algum momento da vida? Devastado, destruído, seja por uma morte, a perda de um grande amor, a perda de um emprego, uma agressão, um abuso, um assalto… muitos são os motivos que podem nos quebrar, e, pelo que conheço das pessoas e do mundo, o fato de você ter escolhido este texto com este título indica uma grade chance de que você também esteja quebrado(a) agora, ou, ao menos que tenha sofrido uma quebra muito significativa em algum momento. Pessoas felizes (ou alienadas), geralmente não se interessam em pensar sobre a dor.

A sensação de estar quebrado após uma vivência devastadora é fácil de perceber. Por outro lado, poucas vezes nos damos conta de que esta quebra tem um porquê. Tudo na existência humana tem uma função, e o despedaçamento não é exceção. Sándor Ferenczi, brilhante psicanalista húngaro, lá nos anos 30, já falava que, após sofrer um trauma nós padecemos de uma “fragmentação”.

O que acontece é que, por um lado, passamos por uma dor intensa demais para suportar, por outro, a vida com suas urgências nos cobra de seguir em frente. Quebrar-se é a forma de continuar vivo após uma dor meus amigos. Um dos pedaços fica lá, machucado, guardado. O outro se levanta e segue vivendo. Só o que não pode é esbarrar em nada que lembre aquele trauma, se não a dor volta com tudo. O pedaço adoecido tem que ficar lá, quietinho. Como disse a Estocolmo em “La casa de papel”, tem um monte de gente que vive normalmente com bala no corpo, não é?

Entretanto, esse mecanismo de defesa cobra um preço alto. Na verdade, um não, eu consigo pensar em dois. O primeiro é que se a cada trauma nós nos quebramos, a cada vez deixamos um pedaço nosso de lado, e, quanto mais isso acontece, mais ficamos vazios de nós mesmos. Passamos a ser visitantes em nossos próprios corpos, em referência à Hannah Baker (13 reasons why).

O segundo ponto é que, assim como a anestesia médica, a fragmentação como recurso para sobreviver à dor, também inibe os sentimentos e sensações bons e felizes da vida. Mais uma faceta do esvaziamento de si. Deste modo, o primeiro impulso é pensar: precisamos remendar os pedaços.

Esse pensamento foi o que guiou meu consultório de psicanálise por algum tempo. Eu recebia pessoas quebradas e fazíamos os remendos. Elas voltavam a ser “inteiras”, e isso, em teoria, deveria fazê-las felizes. Em teoria…

O complicado na verdade é que quando voltamos a ser um com todos os nossos pedaços voltamos a sentir a vida intensamente. Os prazeres são deliciosos, mas as dores também são ampliadas, aumentando o risco de nos quebrarmos de novo. Vivemos em uma eterna rodinha de gaiola, somos ramsters correndo entre o quebrar-se e o remendar-se.

E, entretanto, as vezes é necessário se quebrar. Por vezes é necessário deixar as emoções de lado e pensar com a cabeça. Alguns répteis, em situação de risco, quebram seu próprio corpo, perdem a cauda ou patas, a isto damos o nome de autotomia. A diferença é que eles têm a capacidade biológica de recriar estes membros e serem novamente inteiros. Nós, às vezes, precisamos nos quebrar em função de algo, mas aquele pedaço que se solta é insubstituível. O jeito é pegar ele de volta e remendar.

Na verdade, o ideal seria vivermos em um mundo que não provocasse quebras, mas o ideal só existe na ideia. Assim vivemos em um eterno quebrar-se e remendar-se.

Marcos Moura

Psicólogo, Psicanalista, mestre em Psicossomática e escritor.

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