Você nunca seria o amor da minha vida

Quando vi você pela primeira vez, sentado no banco dessa praça, lendo um livro, com seus fones no ouvido, acho que de alguma forma eu já sabia.

Você era só um completo desconhecido com um rabo de cavalo desgrenhado cercado pelo canto dos passarinhos, e eu precisava atravessar a rua e ir para a minha aula de flauta.

Mas, de noite, o destino me surpreendeu colocando você naquela mesma festa que eu. Minha amiga implicava dizendo que você se parecia com algum conhecido nosso, e eu quis me exibir pra você, dizendo que também tocava, igual a você.

Você me fez uma pergunta elaborada sobre escalas, que, não sei como, envergonhada que eu estava com o desenho tão perfeito da sua boca, consegui responder.

Depois vieram várias coisas. Sua mão sem aviso nos meus cabelos me deixando sem graça. Cruzar o olhar com o seu sem querer durante a aula de dança que começamos a fazer juntos. Minha bochecha esquentando quando você pegou minha mão na saída do metrô. E eu prendi os lábios, em todas as vezes, pra você não perceber meu sorriso bobo. O mesmo que sai involuntário quando estou penteando seus cabelos negros.

É um desses pássaros, voando perto, que me traz de volta. E me tira pentes, dança e bochechas.

Você continua ali sentado, absorto em suas páginas e seus fones. Eu continuo tendo que atravessar a rua e ir para a minha aula de flauta e todo o resto são devaneios meus de que nos próximos dias eu já não vou me lembrar.

Eu nunca vou saber seu nome, sua cor preferida, se detesta jiló ou se a banda da sua vida é Iron Maiden. Você, aí sentado, poderia ser o amor da minha vida, mas você nunca vai ser. Eu não vou te cumprimentar e tentar descobrir. Sabe por quê?

Porque você só encontra o amor da sua vida quando sai de casa sem escovar os dentes, com aquela camisa surrada do seu ex três vezes maior que você, cabelo sem pentear e com aqueles seus óculos fundo de garrafa que sequer deixa seus colegas de apartamento te verem com eles.

Eu tô bonita. Meu cabelo tá de bem comigo hoje, minha roupa tá bem dentro da normalidade e eu até tomei banho.

Você nunca seria o amor da minha vida.

Carolina Palha

Editora, mestre em psicanálise das perversões sexuais e afeita à bagaceira. Nunca soube escolher entre praia, dança e Coca-Cola.

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Seja um dia, seja uma noite, as coisas ficam claras. E elas simplesmente não importam mais. Eu não sei mais o que você está sentindo.
Se me perguntarem qual amiga que sou, vou responder que sou a amiga que fica. Aquela amiga que segue a vida, mas sempre encontra um tempo.